Como Mendoza virou Mendoza

A surpreendente história da capital do vinho da Argentina

Localizada aos pés da imponente Cordilheira dos Andes, Mendoza é hoje sinônimo de grandes vinhos e experiências enoturísticas inesquecíveis. Mas nem sempre foi assim. Muito antes de se consolidar como uma das regiões vinícolas mais importantes do mundo, o território mendocino era um entreposto árido, estratégico para o transporte de mercadorias entre o Atlântico e o Pacífico — especialmente como rota de agem rumo a Santiago do Chile. Era uma terra de travessia, não de permanência.

A escassez de chuvas e o solo pedregoso pareciam, a princípio, obstáculos intransponíveis. Mas a sabedoria indígena já havia descoberto uma solução: os canais de irrigação, que mais tarde foram aperfeiçoados pelos colonizadores espanhóis. Com água trazida do degelo da cordilheira, Mendoza foi ganhando fertilidade. Primeiro vieram as hortas, depois as frutas, e logo os parreirais — trazidos pelos jesuítas ainda no século XVI.

A vitivinicultura moderna começou a se consolidar na região central, principalmente ao redor de Maipú, com foco na produção em larga escala. Na época, as vinícolas eram unidades produtivas fechadas ao público, voltadas exclusivamente ao cultivo e vinificação — não havia qualquer vocação para o turismo.

Com a Secretária de Turismo de Mendoza, Carolina Aguilar.

A transformação começou entre as décadas de 1990 e 2000, quando surgiram projetos inovadores no Valle de Uco, aos pés da Cordilheira. Essas novas vinícolas boutique nasceram com uma proposta diferente: arquitetura arrojada, gastronomia de alto nível, experiências sensoriais e contato direto com o visitante. Muitas vezes, o enoturismo era tão ou mais importante que o próprio vinho.

Ainda assim, a ideia de abrir as portas das bodegas ao público era recebida com resistência pelos produtores tradicionais. Foi o governo local, inspirado em modelos internacionais de sucesso, que apostou no turismo como motor de desenvolvimento. Investiu em infraestrutura, criou rotas enoturísticas, incentivou a capacitação e promoveu a região no exterior. Até hoje, esse papel do poder público continua sendo fundamental em algumas áreas de Mendoza, como é o caso recente dos municípios de San Martín e Junín. Nessas regiões mais tradicionais da produção vitivinícola, o enoturismo ainda é um movimento novo — a vinícola Família Falasco, por exemplo, terceiro maior produtor de vinhos da Argentina, só começou a receber visitantes há pouco mais de um ano, estimulada por ações da prefeitura local.

O resultado é visível: Mendoza se tornou o maior polo produtor de vinhos da América do Sul — mesmo com o Chile liderando em volume de exportações — e hoje o turismo e a produção de vinhos representam mais de 15% do PIB local. A província é, inclusive, a região argentina com o maior número de restaurantes estrelados pelo Guia Michelin, superando até mesmo a capital Buenos Aires, e se consolidou como destino para amantes do vinho e da boa mesa.

Mais do que produzir vinhos, Mendoza soube construir uma identidade. A região que hoje é considerada uma verdadeira Disney para adultos — com vinícolas deslumbrantes, gastronomia de excelência e experiências imersivas — não surgiu por acaso. Ela foi moldada por um esforço conjunto entre governo e iniciativa privada, com planejamento, investimento e visão de longo prazo. É um modelo bem-sucedido que hoje serve de inspiração para outras regiões, dentro e fora da Argentina. Prova disso é que o governo argentino já trabalha de forma semelhante para desenvolver o enoturismo em outras áreas do país, como Salta e Jujuy, no norte andino, que começam a despontar como novos destinos de vinho e experiência cultural. Mendoza é, sem dúvida, um caso exemplar de como o enoturismo pode transformar um território — e uma economia — inteira.

PORCI

Consultora, palestrante e colunista de bebidas
Juíza de vinhos Sommelière de vinhos ABS-SP e AIS-FR
Fundadora da Confraria das Granjeiras

 

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