Eram duas crianças que brincaram juntas. Aliás, mais do que isso, estudaram, mataram aulas, subiram nas árvores carregadas de frutas, armaram arapucas para arinhos, olharam para as meninas trocando de roupas no vestiário da escola pelo buraco que eles mesmo fizeram, riram muito, jogaram bola, usaram estilingue para maltratar os cachorros vira-latas, amarraram latas velhas nos rabos dos gatos, correram das vacas nos pastos, tomaram banho no açude no calor, jogaram bafo e bolinha de gude e ouviram os velhos contarem estórias de saci e mula sem cabeça e ficaram com medo.
Depois, foram dois amigos adolescentes que zoaram juntos. Aliás mais do que isso, azararam as meninas no clube, fumaram escondidos os primeiros cigarros, tanto os lícitos quanto os proibidos, tomaram porre juntos, jogaram bola no time do bar, mataram mais aula, dominaram os jogos no computador, brigaram com quem não eram seus amigos, tremeram de medo pra falar sério com as gurias pelas quais se apaixonaram, se masturbaram fazendo competições, viram as revistas de mulheres peladas e depois os filmes pornôs, jogaram bilhar, contaram mentiras e contaram vantagens.
Mais tarde, se tomaram dois rapazes mais sérios, trocaram as primeiras transas, arranjaram os primeiros empregos, mataram outras aulas, ficaram impressionados com a morte dos primeiros parentes, choraram escondidos, continuaram jogando bola – mas só nos finais de semana, namoraram mais firme e ficaram noivos, casaram-se e foram padrinhos um do outro, viajaram juntos com as esposas, acamparam e riram muito quando ouviram do lado de fora da barraca os barulhos da transa do outro, tomaram os quatro um grande porre, discutiram política e música, jogaram buraco, repartiram o dinheiro no fim da viagem e se deram um grande abraço ao nascer do sol.
Não faz muito tempo, estiveram juntos na maternidade quando nasceu o filho de um e depois a filha do outro, se consolaram quando um teve que largar a faculdade por falta de dinheiro e, logo em seguida, foi despedido, comemoraram quando o outro ganhou um aumento e foi promovido, saíram pra beber quando o pai daquele que estava desempregado e que virava arrimo de família, se encontraram na festa de Carnaval, mas ficaram em mesas separadas por causa da discussão das duas mulheres no cabelereiro, sentiram que alguma coisa ficou estranha quando o mais rico foi de novo promovido e comprou o carro zero, perceberam que piorou o clima entre eles quando o outro anunciou que a mulher estava grávida de novo e que eram gêmeos – fazer o quê se estava desempregado ainda ? – , começaram a se ver menos.
Há alguns dias, um abriu sua própria empresa, e o outro não teve coragem de ir lá pedir emprego, o empresário fez de conta que não viu quando ou com o carro na chuva e molhou o outro que esperava pelo ônibus no ponto, a esposa do empresário pensou em chamar a mulher do outro pra cozinhar no jantar de lançamento da candidatura dele pra vereador, mas desistiu porque soube que a mulher do outro tinha falado que ela era metida, e foi até bom, porque já tinha ouvido falar que ela vinha saindo com um monte de homens depois que o marido ou a beber demais.
Parece que foi ontem que o vereador/empresário e futuro prefeito ficou sabendo da internação daquele antigo amigo no hospital psiquiátrico. Sentiu mais nojo do que tristeza, mas quando chegou a hora de dormir, rezou uma prece solitária para que ele se recuperasse. Depois fez amor com sua linda esposa, para que ela não desconfiasse que ele estava de caso com sua secretária, e dormiu como um anjo. Sonhou que ainda era uma criança, muito sozinha, sem amigo nenhum, no meio de um gramado cinza, onde tinha uma mula sem cabeça e um saci rindo dele, e acordou assustado.
No hospital psiquiátrico, naquela noite, aconteceu o suicídio de um alcoólatra, mas não conseguiram nem avisar a mulher do morto, que tinha se mandado da cidade com todos os filhos; então, ele foi enterrado como indigente.
*texto originalmente publicado no livro “Um psiquiatra neste bando de loucos”
Paulo José Fernandes Moraes
Médico Psiquiatra (CRM 25.116), Jornalista e Escritor
Autor de 3 livros – “Um psiquiatra neste bando de loucos” (República Editorial/2011), coleção de crônicas publicadas na Folha, Estadão, Veja, Careta, com apresentação do poeta e compositor Paulo César Pinheiro); a coletânea “20/20”, reunião de contos, pela Editora Reformatório; e “O Revolucionário do Tesão”, biografia do psiquiatra, jornalista, escritor e agitador cultural Roberto Freire, o “Bigode”, com mais de 50 entrevistas (entre outras Chico Buarque, Boni, Sérgio Ricardo, Frei Betto, Loyola Brandão, Juca Kfouri).
Para ele, uma coisa que lhe parece saudável é poder rir de nossas mazelas, de nossa incrível capacidade de criar fatos extravagantes, da irável possibilidade que a natureza oferece cotidianamente para percebermos o ridículo com o qual convivemos.